sexta-feira, 23 de outubro de 2009

I - Moro em todos os lugares


aos cegos,
que sentem mais
do que veem



"E de novo o embrutecimento suave o dominava. O chão era tão longe que, abandonando o corpo, este por um instante experimentava a queda no vácuo."

A maçã no escuro - Clarice Lispector



"O meu apartamento fechava-se como um punho.
Eu tinha visto o cedro fincar-se no cascalho e salvar da morte o leque de ramagens.
O cedro, que combate noite e dia, na sua própria densidade,
e se alimenta num universo inimigo dos seus próprios fermentos da sua destruição,
nunca mais tem sono.
O cedro a cada instante se funda."

Cidadela - Antoine de Saint-Exupéry




I

MORO EM TODOS OS LUGARES


Tenho
a dizer em minha defesa que desde Maria não durmo.

Não carece saber meu nome, apenas que não durmo. Experiencio a defasagem temporal de 24 horas que se repetem e se repetem e se. Já não sei o que houve. Se por algum instante iminente saberia. Maria se foi com a verdade. E eu sei que em tudo eu quase sei.

A primeira vez que a vi, reparei em seus dentes, grandes, brancos, pingavam leite, queria bebê-los. Quando sorria, seus lábios vermelhos de tal rubro estranho que nenhum batom pinta, nem a rotina encontra, eram coloridos pelas horas. Pareciam esbanjar a felicidade branca do que guardavam e era inacabável. O sorriso sorria Maria fatorialmente. Meus olhos eram embebidos em simetria por cada resquício de branquidão. Lembro-me bem que, antes de me cativar, sua boca fazia questão de enrugar as quinas do rosto, espremendo rubro sobre rubro, já uma dança, tango, devorava-me a própria visão.

É mais que um bilhete roubado, não são as direções dos trilhos do trem, muito menos os sentidos que me importam. Posso estar em Viena, no Jalapão, embaixo d'água, no Ártico, no espaço, morto, que ainda o que meus olhos veem ou viam ou veriam está impresso em minha retina, a última imagem, os dentes de Maria.

Mas não. Não. Poderia ter esquecido de todo o resto a partir deste instante em que na sala 207, quando o relógio já trombava entre as horas e os minutos, a moça de véu veio ao meu encontro. Alguém diria que sua origem era muçulmana, porém um observador mais atento logo entenderia a sua paixão por tecido que plana. Os cabelos tentavam se esconder embaixo das linhas de algodão, mas a brisa que vira arremessava o conjunto para cima. E então. Somente então, eis que vem vindo, as covas, as mãos apreensivas tentam conter o véu de partir, os passos se interrompem, ela me mira de uma olhar que vem baixo e se ergue, as bochechas já róseas,
sorri.

Creio que nesse dia o céu se recusou a tirar as nuvens para dançar, por isso o vento úmido, abrigando os passos, como rosas encaminhadas, pétalas que se arregaçam, sinto que o mundo de Maria se abre neste enquanto. Ela se aproxima lentamente, tento imaginar o que procura, posiciona sua mão sobre a minha, segura-a, aperta, e agora me olhando
diz.

Esperava e continuo esperando que meu olhar dissesse de volta, mas talvez sejam besteiras que as ventanias contam aos sábados, apenas para nos advertir que todos os domingos são dotados de marasmo e solidão.

Algumas vezes os sentidos nos pregam peças, até hoje eu não sei se o que foi dito era um pedido ou uma sentença, embora tenha sido o suficiente para me arrancar da sala quase ensolarada, quase escurecida, por folhagens de cerejeiras da praça principal. O corredor que se segue porta afora, aquele mesmo corredor de todos os dias, se tornou parte da minha história dentro da que Maria haveria de contar.

É disso que tudo se trata: uma história. Nunca saberei se ela o fez para se livrar ou me amaldiçoar. A verdade é que o fez.

Certas pessoas possuem uma mania peculiar, indizível, algo arbitrário, nascem com isso, vivem ligando os outros a elas. Ninguém entende bem o motivo, se pelo jeito de se portarem, os detalhes, se buscam sempre estar próximas dos abismos alheios ou se simplesmente arrastam minunciosidades por onde passam. Eu estava completamente ligado às suas mãos, tal véu, encurralado, não foi difícil me convencer a adentrar aquele bar de mesinhas em xadrez, bastou que me mirasse.

Céus! Como se seus cílios amarrassem os meus!


Pois se sabe, quando a pertubação é tão grande, os olhos se recusam a fechar e quando fecham é para permanecerem acordados.


Depois que nos sentamos, tive a certeza de que ela não fugiria a qualquer instante - na verdade não tive a certeza de nada, mas quis me enganar que sim -, ao menos não ali. O lugar se assemelhava a um comum botequim dos anos 50, fora o fato de que também era uma sorveteria. Entre os golpes toscos de cachaça, crianças e seus avós embriagavam-se de açúcar em potinhos de neve, todos os risos eram bêbados.

Guardar histórias no bolso da camisa, na sola dos pés,... Ah... Tive a impressão de que quem frequenta essa iguaria guarda mesmo histórias embaixo das unhas, discretas, doloridas e grifadas em carne viva.


"É longe". Foram as primeiras palavras de Maria.

E finalmente deixou que o véu escorresse por cima de seu colo.



6 comentários:

Anônimo disse...

sentia sua falta aqui no seu espaço.
Jes,vc arranca da vida o que há de mais belo, e vc fala tão mais belo ainda.

é maravilhoso esse capítulo e já me apaixonei por Maria que é você
e é.
evy

André Camargos disse...

Quem volta de longa viagem
vem com o peito cheio de saudade.
Um dia vi uma menina
que trazia nas mãos
um bouque de rosas e muita poesia.
Eu, que andava trôpego, bêbado,
moço descrente da beleza
lembrei que fazia muito tempo
(muito mesmo)
que eu não respirava,
nem podia dizer que vivia.
Não, seu nome não era Maria!

Anônimo disse...

Rodei, andei em círculos
devagarzinho fui
girei, rodopiei
obstáculos pulei
espinhos nem pensar
não os senti neste caminho
contornei todas as curvas
do meu destino, e assim
recriei meus sonhos
refiz meu percurso
assim vou eu
como águas a rolar
de encontro a mim mesmo.

Bernardo

Jess disse...

Nao sabia que o Sady Mac se chamava Bernardo

.

Nathie. disse...

Vc se transcendeu nesse texto, Jess.

Paula § Danna disse...

O bom da vida é viver bem... a vida que existe em seus textos me faz feliz.

Bjussss